Entrelaços e Embaraços

A jornada de uma artista em busca de inteireza.

“Como sou pouco e sei pouco, faço o pouco que me cabe me doando por inteiro.” -Ariano Suassuna

Nem todo banheiro tem antiderrapante

Teste de resistência: quebre a cara e continue.

“Quando alguém encontra seu caminho precisa ter coragem suficiente para dar passos errados. As decepções, as derrotas, o desânimo são ferramentas que Deus utiliza para mostrar a estrada.”

– Paulo Coelho

Aos meus pais, cujas mãos firmes me impulsionaram e acalentaram depois da queda.





"Isto me assusta"- refletia Meraki, arregalando os olhinhos de espanto...


Ainda era apenas um brotinho de menina, como mamãe gostava de chamá-la, apertando-lhe as bochechinhas rosadas.
Seu papai a entuchava de chamegos: "Você é muito sabida, garotinha!"
E então, agarrando-se aos dois com toda a força, ela tornava-se invencível.
"Estou segura juntinho deles"- convencia a si mesma durante o beijo de boa-noite antes de dormir.

Prosseguindo desse jeito, tudo se entrelaçava perfeitamente para Meraki!
Não fosse aquele único fio solto travesso...
Que de tempos em tempos, embolava-se de supetão, embaraçando o restante...

Assim, a trama enrolou-se numa tardezinha chuvosa:
Ela alegremente apanhava seus brinquedos de borracha e seu sabonete mais cheiroso.
Era hora do banho, o melhor momento de todos!
Cabelo maluco de espuma e bolhas de sabão por toda parte!
E depois, ganhar massagem nos pezinhos e vestir roupa limpinha!
A cereja do bolo? Fazer tudo com papai e mamãe sempre ajudando... né?

"A partir de hoje, você tomará banho sozinha."- proclamaram seus pais em uníssono, enquanto adentravam o quarto da pequenina.
De repente, todos os itens que carregava em seus bracinhos estabacaram no chão.
Ficara atordoada com o decreto dos dois.
Sozinha?! Não conseguiria dar-se banho estando desamparada!

Aquele fio solto que a incomodava? Emaranhava-se mais e mais dentro de seu coração.
Minuto por minuto, enredava-se e transformava-se numa criaturinha feiosa, ainda que poderosa.
Seu nome era MEDO.
Ele, uma vez embaraçado, detinha um poder aterrorizante.

"Eu vou cair sem ninguém para me apoiar"- caraminholava a pobrezinha.
Estava certa de que escorregaria naquele piso liso ensaboado.
Perderia seu equilíbrio.
E se estatelaria!
E então, quando a dor hospedasse seu corpinho indefeso,
Meraki teria de se erguer por conta própria...



Você já se perguntou como nasce uma ideia? Onde ela começa e onde ela termina? Bom, minha mente contadora de histórias imagina a ideia sendo formada por diversos fios multicoloridos, que se concebem de experiências do passado, presente e futuro. Cada uma dessas vivências se conecta fio a fio, tecendo um elo criativo. À medida que você acumula essas experiências e constrói um elo criativo forte, todos os fios se entrelaçam e bum! a ideia aparece. Queria poder dizer que a inspiração chega com GPS e manual de instruções, mas a verdade é que ela não te oferece nenhuma ajuda.

Posto isso, foi dessa maneira que, um belo dia, eu decidi criar um blog. Todo o processo descrito anteriormente aconteceu, e a empolgação de ter um projeto no forninho me consumiu imediatamente. O problema, todavia, foram as lacunas irrompidas desse entrelaço: eu não tinha assunto para escrever.

É engraçado como um único pensamento incômodo abre portas a um abismo de insegurança. O que teve início em uma dúvida acerca de um post para um blog, resultou em uma crise existencial generalizada. “E se eu não for capaz de fazer isso?”, “E se eu não tiver nada de bom a acrescentar?”, “Ninguém vai ler”, “Eu vou me expor à toa”, “Eu não sou boa o bastante”… Subitamente, minha ideia mirabolante havia materializado o meu maior medo: o fracasso.

Passado o ápice do meu surto interno, pensei cá com os meus botões: “É isso! Esse é o assunto! Encontrei a minha musa!” O medo diminuiu, substituído pela necessidade de descarregar minhas angústias em forma de palavras. Então, já peço desculpas de antemão pelas viagens malucas que podem sair disso, mas espero que você possa embarcar comigo nelas.

Agora, sem mais enrolação, vamos bater um papo…

Fracassar. Ao pensar nessa palavra, o que você sente no seu corpo? Talvez, um arrepio na espinha, um gelo no estômago, uma vontade de se esconder, ou absolutamente nada também, por que não? Honestamente, eu sinto uma salada mista entre vergonha, desespero e uma pitada de autoflagelo. É provável que, além de sensações ruins, essa palavra lhe traga memórias, acontecimentos em que você estampou “fracassado” na sua testa. Refletindo quanto a isso, revisitei o filme da minha vida, das melhores às piores situações, e algo curiosíssimo me aconteceu: concluí que eu nunca fracassei.

Foi como ouvir alguém afirmar com unhas e dentes que o céu é verde e a grama é azul. Senti-me, num primeiro momento, muito confusa. Depois, passei vários minutos convencida de que eu era ridícula. Em seguida, finalizei minha descoberta de forma contemplativa. Percebi que tudo o que eu considerava podre ou motivo de chacota na minha história, fez parte da construção da menina que eu sou hoje e da mulher que eu vou me tornar.

Sendo assim, mudando da lente pessimista para a otimista, circunstâncias desagradáveis não são fracassos, e sim, tiros de 100 metros nessa maratona que é a vida. Profundo, né? (Além do mais, essa temidíssima palavrinha de oito letras é muito subjetiva. O que define um fracasso? Um erro? Uma falha? Um tropeço? Uma estagnação? Analisando friamente, esse estigma que o ser humano construiu em torno de si não faz o menor sentido!). Porém, no entanto, todavia,-como nem tudo são flores- minhas tentativas de racionalizar esse sentimento falharam miseravelmente. Mesmo reforçando para o meu cérebro que meu medo não passava de uma ilusão, eu ainda estava apavorada com a possibilidade dele se concretizar. De onde vinha todo esse temor inexplicável?

Você, viciado em pensar tudo de pior que pode acontecer. Você, que não se permite experimentar nada novo, por medo de quebrar a cara: muito prazer, somos os fracassofóbicos anônimos- todo e qualquer indivíduo que possua fobia do fracasso sem nunca o ter vivenciado é bem-vindo (e eu, me incluo nesse grupo). Sinta-se abraçado, você não está sozinho.

Tá legal, você deve pensar que equiparar essa concepção “inofensiva” a um vício patológico chega a ser um pouco esdruxulo. Talvez eu esteja exagerando na comparação, mas uma coisa é certa: essa ruminação desenfreada não deixa de funcionar como uma dependência (e nós podemos aprender muito com a forma na qual os viciados vencem essa situação).

Seguindo por essa linha de raciocínio, o primeiro passo para uma recuperação bem sucedida é a abstinência. Nesse caso, se abster de todas essas crenças limitantes e masturbações mentais que nos perseguem e paralisam. Precisamos, decididamente, declarar “Já chega! Cansei! É hora de mudar.” Dito isso, comecei meu processo fazendo uma bela faxina em todos esses vícios cerebrais que me jogavam ao fundo do poço. Saco de lixo em mãos, luvas de borracha, desinfetante e até óculos de proteção (eu era uma acumuladora de crendices bem talentosa, devo admitir que meus divertidamentes sofriam).

3, 2, 1… à caçada! Vasculhei todos os cantinhos dos meus neurônios, catando cada tralha inútil que eu encontrasse. Ahh olá senhora timidez! (pro saco). Dona complexo de inferioridade, não te vejo desde a semana passada! (tchauzinho, até nunca mais). Aí está você, rainha do drama, vulgo pessoa mais sofrida do universo, pensei que não fosse te encontrar! (xô daqui que eu não te aguento mais). E então, rosnando ali num cantinho gelado e sombrio, estavam eles, o casal apaixonado mais destrutivo do meu inconsciente, madame controle e milorde ansiedade. Arrrrrghhh! Rrrrrrrr!!– ok, já saquei. Vou deixar a dupla dinâmica em paz (por enquanto).

Após um longo percurso destralhando minha mente, enquanto caminhava analisando o que havia restado, escorreguei- vapt! e cai- vupt! Observei, curiosa, o que me derrubou. Olha só, aí está você, murmurei à uma gosminha melequenta e verde musgo envolvendo um monstrinho todo emaranhado, feito um casulo. Enfim sós, medo do fracasso!

Eu era apegada a ele. Quanto mais encarava aquela ameba esquisitinha, menos vontade eu tinha de jogá-la no saco. Era tão pequenininha! Talvez não causasse mal algum, talvez… Opa! Calma lá. Eu tenho uma missão aqui. Nada de dar para trás agora. Peguei o tufinho embolado, limpando toda a gosma ao seu redor. Maldito seja, pois ele rompeu com o grito mais alto e agudo da minha existência. Tentei de tudo, mas ele não calava a boca. Pisei, sufoquei, esmaguei. Fiz que ia afogá-lo com desinfetante (péssima ideia), cresceu e berrou mais e mais.

Inúmeros esforços não fizeram meu monstrinho embaraçado do medo sumir. Pelo contrário, parece que eles o deixaram mais irritado e barulhento do que antes. Infelizmente -como percebemos-, sentimentos não são descartáveis. Quanto mais você os rejeita, maior o tamanho da sacanagem que os chatinhos fazem com sua saúde mental.

Mas que… (insira aqui alguns palavrões de sua preferência). Num piscar de olhos, simplesmente soube o que devia ser feito. Ahh, não. Por favor, não. Não quero fazer isso! E ele, acompanhando minhas emoções (afinal, o emboladinho zangado era parte de mim), agigantou-se à minha frente. O motivo? Eu estava prestes a desembaraçá-lo…



A  porta do banheiro estava aberta e convidativa.
Seus pais já haviam ligado o chuveiro,

Para que ela desfrutasse de um banho quente.
Chuá, Chuá- era o som da água pingando no chão e escorrendo no ralo.
"Isto me assusta"- refletia Meraki, arregalando os olhinhos de espanto.
Encontrava-se petrificada, paralisada pelo medo.
Não queria entrar lá, de jeito nenhum!
Pelo contrário, desejava correr dali até o seu quarto,
Enfiar-se debaixo das cobertas,
E chorar baixinho enquanto o sono não viesse.

"O que eu faço?"- ruminava a garotinha, andando de um lado para o outro.
Observou-se no reflexo do espelho pendurado na lateral da entrada do banheiro.
Estava irreconhecível,
Seu semblante estampando pânico e lágrimas não derramadas.

Lembrou-se do conselho que mamãe tinha lhe dado antes de deixá-la só:
"Coragem não é ausência de medo, brotinho. Na verdade, é justamente enfrentar a situação com medo e tudo."
Depois, soprou-lhe um beijinho na testa
E finalizou garantindo que estaria a um grito de distância.

Meraki temia desapontá-la.
Pretendia ser corajosa!
Assim, todos sentiriam orgulho dela.
Assim, ela sempre seria amada.
Por isso, ao ritmo de passinhos arrastados,
Respirou profundamente e adentrou.

Fechou a porta,
Posicionou seus itens na bancada,
Tirou sua roupa
E encarou a ducha aberta, rodeada pelo vapor.
"É como arrancar curativo do dodói. Não pensa, puxa logo!"- estimulava-se, conforme chegava mais perto.
Você consegue, vamos!

Ergueu o pezinho e o posicionou sob a água, sentindo a temperatura.
Morninha, como ela gostava.
Molhou o restante do corpo,
Apreciando a forma na qual as gotículas pousavam em seus ombros
E escorriam em direção às pernas.
Tudo corria bem, mas a garotinha ainda agia de modo cauteloso.
Agora, precisava se ensaboar.
Lentamente, segurou seu sabonete e o esfregou entre as mãozinhas.

Entretanto, o monstrinho embaraçado dentro da pobrezinha,
Sussurrando alertas preocupados,
Deixou-a distraída.
E- vupt!- o sabão deslizou e escapou.
Essa não! Teria de se pôr de cócoras para pegá-lo!

Não conseguira, já era tarde demais...
O piso ensaboado a fizera patinar.
Desequilibrou-se...
Escorregou...
(Ficara suspensa no ar por um ou dois segundos antecedentes à queda.)
TIBUM!- Meraki caiu.

Dor...
Dor...
Tudo doía...

"Ma-mamãe! Pa-papai!"- soluçava e clamava por ajuda.
Deitada ali, olhava esperançosa em direção à porta fechada.
Imaginava, desolada, o momento em que ela se abriria,
O momento em que seus pais viriam socorrê-la.
Esperou... em vão.
Ninguém chegou.
Onde eles estavam? Não escutaram suas súplicas desesperadas?

"Engole o choro e se levanta. Ficar de mi mi mi não vai adiantar"- dizia uma voz na mente de Meraki.
Todavia, força nenhuma seria capaz de interromper o seu pranto.
Tampouco conseguiria fazê-la se erguer.
Então, ela permaneceu daquela maneira,

Permitindo que seus pensamentos percorressem livremente.

O que os outros diriam?
Será que seus amigos tirariam sarro dela se soubessem que ela nem dava conta de tomar banho sozinha?
Patética, era isso que ela era.
Observando o teto sobre sua cabeça, esgotava-se de tanto lamentar o seu fracasso.
Seus pais haviam confiado nela.
Será que nunca atingiria as expectativas deles?
"Tenho medo de ser rejeitada, ridicularizada."- pensava, cabisbaixa.
Sentia-se estagnada, envergonhada, incapaz...

Sentia-se... melhor?
Sim!
Sem que ela percebesse, após enfrentar o medo,
Reconhecendo e acolhendo o que o instigava,
Aquilo que estava emaranhado fora se soltando.
Sem demora, as dores haviam passado.
Copiosamente, o choro cessou.

E, esparramada no azulejo frio daquele banheiro, os fios multicoloridos na sua cabecinha tornaram a trabalhar como de costume.
Entrelaçando-se uns nos outros...
Bum! Formara-se uma ideia.
Tão, tão boa que até arrancara um sorriso da menina.

Cuidadosamente, Meraki levantou-se para executá-la.
A seguir, fora avançando devagarinho a um pequeno armário,
Localizado no sentido oposto ao chuveiro.
"Como não pensei nisso antes?"- ela se questionava, rindo um pouco da situação.

Abrindo a gaveta, lá estavam eles:
Um par de chinelinhos rosa brilhante!
Ao vê-los, soltou um suspiro de alívio.
Agora sim! Teria seu próprio antiderrapante.
Calçou-os, um em cada pezinho enrugado pela água,
E retornou ao seu banho, dessa vez sem hesitação...




Aviso importante: o monstrinho embaraçado sabe ser destrutivo!

Em meio à luta que meus hábeis dedos traçavam para desenredá-lo, o medo do fracasso insistia em sua altivez, mantendo o volume estrondoso de seu ganido a qualquer custo. Percebendo minha total falta de redenção (a essa altura o barulho tinha virado uma espécie de trilha sonora estimulante, como aquelas dos filmes de ação, sabe) ele, obstinadamente, assumira outra tática- uma que me derrotaria pelo cansaço. O berro fora diminuindo, diminuindo… transformando-se em uma voz grave e punitiva: “Pensou mesmo que conseguiria me calar, tolinha? Huahuahua, você é mais ingênua do que eu pensava. Está fadada ao fracasso, a ficar sozinha. F-R-A-C-A-S-S-A-D-A!”

Bufei e revirei os olhos em resposta. Droga, a falação desenfreada ia começar. Visto que meu esforço em o impedir nas outras vezes não funcionaram, decidi por assumir uma postura inédita: em troca da repressão usual que eu exercia a fim de calá-lo, simplesmente o escutei e prestei atenção naquilo que ele almejava me contar.

“Afff, deixa de ser patética, garota. Para logo de tentar me desembaraçar. Não vai funcionar mesmo, você nunca vai conseguir! Será TUDO em vão. E depois, quando você finalmente afastar todos aqueles que estão ao redor com esse seu… “jeitinho de ser”, restaremos só nós dois. ATÉ A ETERNIDADE! Huahuahua!”

(Ok, é impressão minha ou ele é um pouquinho dramático?)

“Aii! Suas garras estão machucando o meu nozinho! Pare de me cutucar! Assim dói, tá?”- resmungou o chatonildo.

(Humph, bem feito! Eu estava quase lá, só faltava um tufinho para desembolar.)

“Isso já está ficando meio entediante, não acha? Com que finalidade você deseja melhorar se o seu destino é falhar e ficar só? ”Fracassar faz parte do aprendizado”, nhé nhé nhé… Isso é papo de perdedor! Se quiser ser amada, não pode errar de jeito nenhum! Precisa ficar sempre atenta e evitar tudo que possa te sabotar! Tá me ouvindo, esquisitona? ANDA NA LINHA PRA NÃO FICAR SOZINHA.”

(E… pronto! Missão dada é missão cumprida! Desemaranhei tudo, agora é esperar para ver o que acontece…)

“NÃO! Você não podia ter feito isso! Eu só estava tentando te proteger, te proteg…”- a voz predadora fora se apaziguando, reduzia-se e tornava-se aguda, até o romper de um soluço choroso.

“E-eu, snif! E-eu me sinto so-sozinha…P-por que v-você me abandonou? snif!”- soprava um lamento manhoso e espremido.

Mas o que era aquilo? Forçando minha vista, pude enxergar que no núcleo do monstrinho do fracasso, abrigava-se uma criaturinha miúda encolhida em posição fetal. Fui chegando perto… e mais perto. Quem é você?

“V-você não me r-reconhece?”- perguntou a pequenina, retirando a cabeça do meio das pernas e me encarando profundamente.- ” Eu sou você.”

E então, olhando bem aquele rostinho, pude identificá-la. Mesmos olhos grandes, mesmo cabelo castanho encaracolado. Parecia que eu tinha viajado no tempo, encarando-me uns anos atrás. Ela era a minha criança.

“B-bem, na verdade, eu costumava ser v-você.”- corrigia-se, fungando e choramingando- “M-mas aí, v-você cresceu e deixou de gostar de mim, snif! E-eu não sei o que fiz de errado!”

Ela seguia em seus lamurios e eu me corroía com a culpa, deixando que suas lágrimas contagiassem meus olhos também. Lembro-me de quando tinha essa idade. A vida era boa, o mundo era bonito e eu era parte disso tudo! E então, tudo desmoronou… As primeiras decepções vieram.

No começo, meu jeito birrento de me expressar precisou ser reprimido: aprendi a falar em vez de gritar. Consecutivamente, entendi que para ser aceita, a espontaneidade teria de ser descartada: tinha de estar sempre atenta às minhas palavras, sorrindo e me comportando bem, para não sofrer rejeição alguma. Depois, concluí que, agradando a todos, meu senso de pertencimento seria, enfim, restaurado. Em seguida, cheguei a pensar que a chave para o sucesso seria consertar minha aparência e afiar minha competência: deveria ser bela e produtiva; assim, seria digna de admiração e companhia. Por fim, quando nenhum dos métodos probatórios funcionaram, desisti de continuar tentando. Isolei minha essência genuinamente alegre, esfriei meu coração naturalmente compassivo e tornei brando o temperamento forte que herdei de meus ancestrais. Construí a muralha mais resistente possível ao meu redor e me certifiquei de que todos os cantos possuíssem antiderrapante, para que eu nunca mais fosse derrotada pelo “fracasso”.

Os dias ensolarados tornaram-se frios e cinzentos. A intensidade dos sorrisos fora se apaziguando. Disciplinei aquela criança, com seu espírito puro e livre, utilizando da voz opressora do monstrinho do fracasso. Constatando a resistência de seu comportamento inerentemente indomável, decidi por aprisioná-la completamente. Dessa forma, ela se emudeceria para sempre e me deixaria batalhar pela aprovação alheia em paz.

Mesmo enclausurada, ela dava um jeitinho de se comunicar comigo. Uma única brechinha que surgisse, a fazia gritar e alertar que algo estava errado. Às vezes, ela me dizia para ser menos cruel, para descansar, para relaxar; implorava para que eu voltasse a escutá-la. Aspirava me mostrar que meu desejo desesperado em ser vista pelo outro, refletia a necessidade que ela tinha do meu olhar amoroso.

Fui eu quem a largou dessa maneira. Não foi fulano, ciclano ou beltrano que me recusaram, abandonaram e feriram tão profundamente. Fui eu. Eu sou a voz do medo, mas eu também sou a voz do amor.

“Ei, olhe para mim.”- proferi, enquanto erguia seu queixo para que me encarasse – “Sinto muito por ter te afastado durante tanto tempo. Estava tão cega em meu sofrimento que não conseguia abrir meus olhos para te enxergar, não fui capaz de ouvir meu coração. Mas agora estou aqui. Não fique preocupada, cuidarei de você.” Abracei-a o mais forte que consegui, gesto esse que intensificou o seu pranto.

No decurso de meu acolhimento perante à criança ferida, recordei-me de uma canção, cuja composição e arranjo vieram de minha mãe.

Cantarolei sua melodia, na esperança de que sua beleza e profundidade sustentassem um amparo que não era possível através das palavras puras:

"Menininha, desculpe te deixar sozinha
Estive tão ausente assim, distante assim de ti
Distante assim, ausente assim de mim.

Menininha, confia estou aqui contigo
Agora vou cuidar de ti
Cuidar de mim, enfim
Cuidar de ti
Cuidar de mim, enfim."

Ao finalizar a cantiga, deixei que o silêncio batizasse aquela reconciliação. Nossos corações brilhavam unidos, projetando uma luz imensuravelmente bonita. Senti que renascia, que retornava para o meu lugar de origem. Foi como encaixar a última peça perdida de um quebra-cabeça precioso. Depois de tanto tempo buscando por aí, finalmente havia encontrado a parte que faltava: eu. Pude restaurar o âmago de minha alma, devolver-me a mim mesma, ao meu lar.

A partir dessa integração, soube que estava pronta para percorrer a jornada que enfrentaria pela frente. O medo do fracasso continuaria a me assombrar, seus murmúrios distorcidos ecoando em meus ouvidos, rogando pelo retorno de minhas barreiras emocionais. Porém, atravessando a distorção, eu acharia um discurso tão vigoroso quanto. Mensagens emitidas a partir do amor. Se eu escolhesse nutri-las, o monstrinho embaraçado já não possuiria mais tamanha intensidade e entenderia que era hora de se retirar. O pavor da rejeição perderia seu sentido, pois eu nunca viveria sozinha. Restaurada, cruzaria meu caminho com pessoas que apreciariam meu “jeitinho de ser”.

Em certo ponto, a menininha adormeceu em meus braços. Pedi a ela que me acompanhasse e me guiasse ao longo do caminho, agradecendo pelo seu retorno. Devolvi-a para o seu território, tirando-a de minha cabeça e reinserindo-a em meu coração.

Respirei, profunda e lentamente, assimilando o que havia acontecido. E eu, ingênua, pensando que o problema a ser resolvido era dar chá de sumiço no emboladinho! Depreendi, entretanto, que seu papel não era de vilania ou maldade intrínseca em meu conto de fadas imperfeito. De maneira errática, ele também pensava cumprir a função de conselheiro e protetor. O flagelo e a crueldade apenas arranhavam a superfície, acobertando um corte profundo que não teve chance de cicatrizar e sarar.

Bu! Vou atrapalhar só um pouquinho o andamento do texto, mas prometo que vai valer a pena. Dá uma chance!
Um bilhete singelo, da minha criança para a sua:

Querido leitor,
Caso você tenha se identificado com meu relato e esteja interessado em contatar sua criança interior, indico de coração esta meditação aqui abaixo, guiada pela minha mamãe.
Você já se deu carinho hoje?
Beijocas, da pequena Lulli.
P.s.: No minuto 17:05 você poderá ouvir a música que mencionei, viu?

Era só isso! Rapidinho, né? Fui…

Observei atentamente o saco em que jogara as “porcarias” encontradas durante a faxina cerebral. Algo novo brotou em meu corpo, deixando-me arrepiada. Era compaixão. Não descartaria aqueles fragmentos de minha personalidade. Cada um, por mais ínfimo e repugnante que aparentasse, escondia partes valiosas ainda desconhecidas. E eu estava louca para desvendá-las! Queria descobrir todas elas! Por consequência, revirei todo aquele lixo e sacudi bem a sacola vazia, garantindo que todos regressassem aos seus respectivos locais.

“Pois é, amiguinhos.”- suspirei, inclinando-me para contemplá-los. “Parece que iremos aprender muito uns com os outros. Vem cá, alguém aí está a fim de reciclar?”



Aqui vai a conclusão, um resumo da mensagem que gostaria de passar nos últimos instantes do segundo tempo deste nosso jogo de abertura. Obrigada por me fazer companhia até aqui!



Caso você já tenha se empenhado em desembolar um novelo de lã embaraçado, provavelmente deve recordar o quão exaustiva, angustiante e interminável a tarefa parece. O tempo passa e a sensação é de que nós não saímos do lugar. Podemos soltar metros e metros do fio e ainda faltará muito para desemaranhar. Bom, devo confessar que me senti assim ao entrar em contato com minhas emoções conflituosas. Chamo isso de teste de resistência, pois não possui pausa ou linearidade, a única certeza é de que irá doer. Por ser uma travessia pessoal, tendemos a experimentar muita solidão nesses processos, tornando-o desgastante do começo ao fim.

A boa notícia é que durante o dia o deserto pode até ser árido e abafado, mas ao anoitecer, é fresco e estrelado. Dito de outro modo, por pior que seja a caminhada, ela passa. Você pensará que permaneceu horas e horas trabalhando naquele novelo. Seu corpo começará a doer e reclamar, avisando o esgotamento. Repentinamente, ao pausar e observar o que foi feito, você encontrará um longo cordão completamente livre de nós. Toda a dor terá valido a pena. E, olhando para trás, você sentirá orgulho de si mesmo e da trajetória que o levou àquele momento.

Arrematando esta conversa, percebo que o medo do fracasso é algo muito mais extenso e estrutural do que aparenta ser. Fomos todos moldados a partir do slogan da rejeição: siga o padrão pré-estabelecido, senão iremos te excluir, te enxotar; forçar você, criatura rebelde e selvagem, a se contorcer para caber aqui. É assim que a engrenagem social continua a girar. Religião, escola, trabalho, relacionamentos e família. Tudo nos leva a crer que existe um jeito certo de viver. Então, caro amigo do FA (fracassofóbicos anônimos), nosso temor é plenamente justificável. Do nascimento à morte, aprendemos que o autoencolhimento é uma premissa básica para se estar em sociedade. Mas enfim, não me estenderei muito nesse quesito. Planejo retomá-lo em outro post.

Acho útil ressaltar que cura não é sinônimo de ausência de sofrimento. “Viver é sofrer, sobreviver é encontrar algum sentido no sofrimento”, já dizia o filósofo Nietzsche. Tenho aprendido diariamente com a sabedoria desta afirmação. Passamos tanto tempo de nossas vidas tentando nos livrar do medo, da angústia, da raiva e da tristeza que, sem perceber, acabamos por causar tudo isso. Enquanto tentei enxotar o monstrinho fracassado de dentro de mim, encontrei apenas escuridão. Integrá-lo, por outro lado, trouxe-me alegria e paz interior. E é bom saber que ele não foi embora. Porque, como comentei antes, sou um tiquinho apegada a ele (o que é natural, somos todos humanos aqui!). Portanto, deixo claro, escrito em letras garrafais, que ao negar tuas emoções, estarás negando a ti mesmo. Vou além, dizendo mais do que isto até: estarás negando tudo aquilo que pulsa, que dança, que brilha e que cria. Estarás negando a potência do amor.

Aceitar a dualidade do mundo é o primeiro passo para uma presença plena. Ancorar-se no aqui e agora, respeitar aquilo que sua intuição lhe diz, traz saúde. Engatinhe, ande, tropece, caia, levante e repita o ciclo quantas vezes forem necessárias.

Nem todo banheiro tem antiderrapante, e tudo bem. Apenas inspire, expire… Oi, medo. Estou vendo que você está aí. Você é bem-vindo, pode entrar. Inspire 1,2,3,4… Expire 1,2,3,4…

Calce seus chinelos e prossiga. Eu já calcei os meus…




Finalizando sua rotina pós-banho,
Meraki transbordava de alegria pela sua conquista:
Caíra uma única vez e conseguira se levantar por conta própria!
Uhu!- toca aqui!
Prontamente, já em sua saleta de brincar,
Com seu cheiroso cabelo penteado e sua roupa limpa no corpo,
A garotinha cantarolava suspiros animados
Enquanto arrumava os brinquedos que havia utilizado.


Ouvindo, ao longe, a celebração da menina,
Papai e mamãe, muito curiosos, aproximaram-se e questionaram:
"Filhota, como foi a chuveirada? Tem algo mágico na água? Também quero ficar empolgadão desse jeito!"- começou papai, rodando-a em piruetas.
"Você parece muito feliz, brotinho! Quero saber tudo, tim-tim por tim-tim!"- comentou a mãe.

Atendendo ao interesse genuíno do público,
A sapequinha caçou duas almofadas e posicionou-as no chão,
Sinalizando para que eles se sentassem confortavelmente.
Sem demora, posicionando-se no centro de seu palco imaginário

E invocando a atriz nata dentro de si,
Ela limpou sua garganta
E encenou dramaticamente o ocorrido!

Empenhou-se arduamente em transmitir a intensidade de seu medo
E a dureza de sua queda.
A plateia, acompanhando o desenvolvimento da narrativa,
Soltava "Ohh!" e "Ahh!" nas passagens repletas de tensão,
Ria de seus trejeitos intencionalmente engraçados
E lacrimejava em reconhecimento aos minutos dolorosos.

"E... FIM!"- ao término, curvava-se, ofegante, em reverência aos calorosos espectadores.
Aplausos, assobios e rosas arremessadas- clap! clap! clap! fiu! fiu!
(Tá legal, não foi bem assim que aconteceu a contação da história, mas essa versão é mais divertida, não acha? )

"Sentimos muito por não termos atendido quando nos chamou! Deve ter sido aterrorizante passar por toda essa aventura sozinha!- queixavam-se os pais, checando a filha da cabeça aos pés em busca de feridas ou arranhões.
"Foi ruim mesmo..."- confirmou a garotinha com um biquinho manhoso.
"Mas, olha, não se preocupem! Agora eu sei que sou capaz de me virar, sem precisar de retaguarda.
Pois vocês sempre me ensinaram a perseverar diante dos desafios. Eu posso fazer isso! Só preciso calçar meus chinelinhos, hihihi..."

Consumou o desabafo dando abraços apertados
E beijos quentinhos em cada um.
Após a comoção, o casal se ergueu e auxiliou na organização do local.
Quando cumpriram a tarefa, seguindo em direção à porta,
Foram interrompidos por Meraki, que perguntou,
Demonstrando êxtase através de seus brilhantes olhos pidões:
"Amanhã, posso tomar banho sozinha?"

*Artista: Lulli




11 respostas para “Nem todo banheiro tem antiderrapante”.

  1. Querida Lulli, quanta beleza, delicadeza, profundidade e coragem! Uma inspiração para todos que estão na jornada da Vida e atravessando seus desertos ardentes, as vezes ainda sem terem encontrado seus chinelinhos…! Obrigada por compartilhar esse texto tão belo! Tocou minha alma profundamente! Te amo de montão! Mariléa!

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    1. Muito obrigada pelo carinho, Mariléa! Você é um anjo na minha vida ❤️

      Serei eternamente grata por tudo que você tem me ensinado! 🌻💫 Te amo

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      1. Avatar de Marilea Brasil
        Marilea Brasil

        Aprendo muito com vc! Bjs lindeza! Feliz Páscoa!

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  2. Avatar de Maternar por Ozana Clara
    Maternar por Ozana Clara

    Lulli, é com grande comoção que te escuto. Ao ler seu maravilhoso relato, vejo a Meraki que te habita e repasso toda a sua história até aqui. O mérito é todo seu por encontrar e se reconciliar com a sua criança interior.

    Você é e sempre será a minha Menininha. Desculpe pelas minhas ausências. Confie, vou cuidar de ti e vou cuidar de mim sempre. A sua cura é a minha cura.

    Siga iluminando, filha! Você é uma grande artista. É lindo testemunhar o seu florescimento.

    Te amo!

    Mamãe.

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    1. Você mora no meu coração, mãe! Sou muito grata a Deus por ter nascido sua filha 💖

      Te amo até o infinito!

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  3. Querida Lulli, amei tudo. Texto belo, bem escrito, envolvente. Me identifiquei, ri, me emocionei…o desenho? Uma fofura total!!! Reconheci uma artista em ti desde o nosso primeiro encontro e me deslumbro com tua criatividade, potência e talento. Uma inspiração!! Siga em frente!! É lindo ver tua estrela brilhar. Um abraço carinhoso

    Laida

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    1. Me aquece o coração saber disso, Laida! É maravilhoso ouvir isso de uma artista tão talentosa. Muito obrigada pelas palavras ❤️

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  4. Querida Luiza que maravilhoso é ler suas palavras, sim sua escrita me encanta. Amei a forma que você encontrou para falar de assuntos atuais e que acompanham adultos, crianças, adolescentes e jovens. O medo, a insegurança, a necessidade de agradar… Fiquei emocionada com a sua criança interior, em como conseguiu falar de sentimentos e angústias de uma forma poética. Siga em frente sempre minha querida, use esse talento que tem para a escrita e brilhe estrela, brilhe dentro de você mesma! E deixe que mundo te conheça assim, sendo você mesma.

    Parabéns Lu!!!

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    1. Gratidão eterna Dona Ju! Você foi mestre em minha vida. Jamais esquecerei o que aprendi sendo sua aluna. Obrigada pelo incentivo 🌻💫

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  5. Avatar de Reginaldo Medeiros
    Reginaldo Medeiros

    Lulli minha filha querida. Que relato emocionante. Seu texto desperta a curiosidade do leitor. Seus medos, seus traumas, seus desafios e superações foram relatados de forma muito divertida. Embora nós sabemos que isso deve ter sido muito dolorido.

    Pena que os filhos não vêm com manuais de instruções, não é mesmo? Se viesse, talvez, alguns desses traumas poderiam ter sido evitados ou pelo menos minimizados. Eu como pai de primeira viagem e você como minha primogênita, embarcamos em uma aventura desconhecida.

    Confesso que não sabia oq fazer quando recebi a “missão” de acalmar uma menininha meiga mas que em alguns momentos virava um dragãozinho indomável. A menininha que nunca chorava mas gritava com tanta força que o quarteirão a conhecia. Eu, sem o tal manual, tentava de todas as formas acalma-la, muitas vezes sem sucesso. Tentei de tudo, até à “supernanny” eu recorri. Lembro de vc gritando: “me tira daqui pelo amor de Deus”, vem, vem, vem… quando te colocava pra dormir sozinha no seu berço. Eu sem saber oq fazer ouvia os concelhos da TV: … tem que deixar chorar! Hoje reconheço que o remédio pode ter sido amargo demais. Peço desculpas por isso. Talvez seus medos e angustias venham dessas desengonçadas tentativas de acalmar seus temperamentos explosivos “herdados dos seus ancestrais”.

    Tudo isso não passa de suposições, pois eu como pai também tenho os meus medos e incertezas. Eu me tornei adulto mas, no fundo também sou um velho menininho que calçou seu chinelinho, cresceu e foi aprender a cuidar de uma menininha Meraki.

    Enfim, espero que você consiga resgatar a sua espontaneidade reprimida, que vc fique cada dia mais autoconfiante e seja muito feliz.

    Seu blog é inspirador.

    Te amo!

    Reginaldo.

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    1. Você me inspira a cada dia, pai. Reconheço e agradeço por todo o amor que você dedica na minha criação. Suas palavras me emocionaram muito! Te amo para sempre…

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